Nos dias 11 e 12 de novembro, quem transitava pela via esburacada e lamacenta que liga o Bairro Bela Vista à Vila Nova, não deixou de observar, com certa ponta de curiosidade, um grupo de aproximadamente quatro jovens artistas-estudantes e um professor do CED São Francisco, que pintavam e bordavam, no melhor sentido do termo, sobre o muro de uma instituição local.
Instituição que, apesar de estar em uma área nem tanto descentralizada assim do grande formigueiro humano de São Sebastião, ainda é desconhecida por muitas pessoas que, uma vez inquiridas quanto ao conhecimento da mesma, logo respondem em tom de espanto: “Onde é que fica mesmo”? Na Quadra 29, Lote 21C, Bairro São José, alguém responde.
Já não notamos cores, matizes, formas e contornos, passamos os olhos numa rápida e descompromissada olhadela. Pior do que isso, já não observamos com um olhar sincero, de um olho ao outro, as pessoas que passam. Apenas as olhamos indiferentes, orgulhosos e cheios de reservas. Não queremos nos envolver, mesmo já estando mais que envolvidos com tudo isto que nos cerca e dá sentido ao que somos e fazemos todos os dias. De fato, é bem verdade que merecemos ser tachados de seres complexos e por demais complicados.
Alguns arriscam a dizer que o grupo nasceu mesmo de um imenso desejo do veterano professor de educação artística do CED São Francisco, José Eugênio, de juntamente com alguns de seus mais aplicados pupilos e amantes da arte, difundir para além dos quatro muros da escola a beleza das cores, dos traços e das mais variadas formas artísticas através da pintura.
Nas palavras do próprio Zé Eugênio, “o grupo surgiu em 2009 com a proposta de pintar o muro do São Francisco, trabalhando com uma turma (classe), e depois montamos um grupo de cinco alunos para trabalhar em muros fora da escola. Mas antes disso, participamos do projeto Cem muros mil cores, na Ceilândia. Em 2010, os integrantes mudaram e passamos a pintar as paradas e alguns muros em São Sebastião a partir de uma parceira desenvolvida com os alunos Joaquim, Natanael, Rafael e Paulo Henrique”. Espaço mais apropriado não poderia existir que a própria São Sebastião com suas imensas ruas, sua diversidade de gente, suas praças, esquinas e aquele ar incomparável de cidade serrana em pleno Planalto Central, além de alguns poucos espaços privilegiados onde a imaginação artística faz verdadeiros milagres da natureza. Desta vez, o espaço escolhido para receber as marcas registradas do Coletivo São Francisco foi o Centro de Educação Popular de São Sebastião (CEPSS), que teve a sua frente pintada com as cores e temas que remetem à educação das relações étnicorraciais, à cidadania e à cultura Afro-Brasileira - linha de atuação na qual a entidade já desenvolve trabalhos há quase quinze anos.
Mediante uma bonita parceria, o grupo de artistas se dispôs espontaneamente ao trabalho, ao passo que o CEPSS entrou com as tintas e outros materiais. “O que São Sebastião precisa urgentemente é de um centro de cultura que reúna num só espaço os artistas locais, que não são poucos”, ressaltou Eugênio, ao analisar o cenário e a situação da cultura local. “Os talentos pululam pelas quadras, escolas e bairros de São Sebastião. É preciso matar a sede de cultura dos jovens”, alertou. Mal o grupo finalizou a pintura mural do CEPSS e já estava bolando um novo visual bem descolado para o Colégio Centrão. Alunos, professores e funcionários, não vão perder por esperar pelo feito ou mesmo, como queiram alguns, pelo “renascimento” do espírito da escola que é a cara da cidade. Quando perguntado sobre os reflexos dos vários trabalhos de pintura espalhados pelas paradas e muros, Eugênio disse que tem um projeto muito maior de pintar toda a cidade, mas que, infelizmente, falta apoio e isso sem falar do total desrespeito com o patrimônio público e o vandalismo de alguns, que mal esperam que as pessoas contemplem os trabalhos, e já estão pichando e depredando paradas e praças públicas - ação condenável sob todos os aspectos. Isto é apenas um exemplo de o quanto o novo-velho governo terá que investir de forma maciça em educação e cultura para nossas crianças e jovens, os quais muitas vezes pela falta de ocupação para a mente ou algo melhor para fazer, “tocam o terror” nas horas vagas, numa alusão a maneira como muitos costumam dizer. Quando não, vivem desembestados pelas ruas e avenidas matando o tempo e ocupando suas cabeças com o que de pior o mundo lhes oferece: drogas, violência, prostituição, só para citar alguns males. Ainda bem que nesta cidade temos boas iniciativas de instituições sociais (e não são poucas!) que trabalham de forma séria e comprometida para alimentarem o sonho diário que muitos têm de se tornarem cidadãos e cidadãs da grande massa social pelo viés da educação e da cultura. A Produção
Olhares que se cruzam de uma ponta a outra de um muro de quase 15 metros de cumprimento. Uns, olham de longe, outros, um pouco mais de perto, quase em primeiro plano. Analisam daqui, medem de acolá e modificam, refazem planos e traços, tudo muito meticulosamente pensado. Ideias vão surgindo ao vento e fluem na imaginativa e original concepção dos estudantes ao correr de olhos pelo muro que os espera, ansioso, por ser revigorado, revitalizado e colorido.
Sprays, pinceis e tintas na mão e muitas, muitas ideias na cabeça, ávidas por virem à tona e ganharem forma pelas mãos dos talentosos alunos-pintores. Após decantarem-se bem as ideias, surgem os primeiros traços do graffiti aqui e ali que precedem a primorosa obra de que em poucas horas será concebida. Mais algumas horas de trabalho intenso, mesmo sob chuva ou sol, e eis que as derradeiras pinceladas já imprimem uma nova feição à estrutura que até então era apenas mais um muro como outro qualquer. A rica imaginação dos pintores associou elementos artísticos às cores que representam a cultura Afro-Brasileira - o verde, o amarelo, o preto e o vermelho - e dessa miscigenação de cores nascem figuras simbólicas, tais quais a bandeira brasileira, o homem negro com o seu inconfundível estilo Black Power, a capoeira e seus elementos, a logomarca da entidade, resultando numa bela composição.
Mais adiante, tínhamos a educação, esta, representada por um jovem que, quando visto um pouco mais de longe, parecia estar um tanto compenetrado lendo algo muito importante, ao mesmo tempo em que denotava estar vidrado na tela de um computador, caracterizando muito bem a complexidade e os paradigmas da vida moderna, na qual somos quase que coagidos a nos manter antenados com a desvairada maratona de busca do conhecimento.
A cena também sugere a suma relevância que atualmente representam em nossas vidas a internet e suas Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC), frutos desta era globalizada que nos coloca em contato instantâneo com os mais distantes rincões do mundo a partir de um simples click.De toques a retoques, preenchimentos de espaços com tonalidades variadas e escolhidas a dedo, finalmente eles chegaram ao resultado que esperavam ou, quando muito, imaginaram atingir. Pronto. Eis a obra feita.
E foi valorizando fortemente as cores que originalmente compõem a logomarca da entidade (azul, branco e vermelho) e retratando a temática Brasil-África com fortes contornos, que os artistas transpuseram de seus ideários arrojados e vanguardistas uma gama variada de elementos, como bandeiras, mapas, símbolos e personagens recorrentes da cultura e da história Afro-Brasileira, como se estivessem a montar um perfeito quebra-cabeça ou um mosaico simétrico, de formas equilibradas e artisticamente belas.
Diz o poeta francês Mallarmé (1842-1898), que o prazer da poesia está em decifrarmos enigmas. “Sugerir, eis o sonho”, afirmou certa vez o mestre simbolista. Assim sendo, em se tratando de poesia, pintura ou qualquer outra manifestação artística, a obra está em aberto para aqueles que queiram compô-la com os próprios olhos e a imaginação.
Para saber mais detalhes da composição dos meninos do Chicão, aconselha-se visualizá-la de perto e o mais detidamente possível. Os trabalhos estão por toda a cidade: Paradas de ônibus, muros de escolas e instituições. Só não vê quem não quer.
Ninguém paga para ver, ou melhor dizendo, até que pagaria sim, porque vale muito a pena conferir esse trabalho que é de uma qualidade excepcional. Com isto, Zé Eugênio e seus alunos nos prestaram, em nome da suprema arte, o grande favor de tingir de curiosidade os olhares, antes mortos e automatizados, daqueles que iam e vinham todos os dias pela mesma estrada esburacada e lamacenta, que passavam em frente ao CEPSS e simplesmente o atropelavam com suas vistas acomodadas à poeira vermelha e ao tédio da mesmice de todo dia.
O CEPSS ganhou uma frente nova, um novo aspecto, numa semana em que tudo parecia mesmo ser novidade, já que também estavam acontecendo no seu espaço as movimentadas atividades da X Semana de Extensão da UnB. E se é verdade que a instituição está de cara nova, também é verdade que as suas palavras de ordem e, ao mesmo tempo, o ideal que até hoje persegue com muito empenho e persistência – Educação e Cidadania- continua estampado, em letras garrafais, bem ao centro do conjunto da obra assinada pelos talentosos artistas do Coletivo São Francisco.
Viva a arte e viva, principalmente, artistas como estes que fazem do seu digno ofício um caminho para a construção da cidadania. E viva aqueles que fazem da arte “a expressão da mais alta revolta”, que não se deixam sugar pelo sorvedouro da alienação.
O CEPSS agradece imensamente ao professor José Eugênio e a seus brilhantes alunos pelo belo trabalho realizado. Coloca-se a inteira disposição e abre suas portas para vindouras parcerias no intuito de potencializar a troca de experiências entre a comunidade escolar e as Organizações Não-Governamentais de São Sebastião. Em nome da educação e da cidadania, o nosso muito obrigado!
Texto e Fotos: Por Francisco Neri